segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O Menino Selvagem

O garoto selvagem - legendado pt br from Silvana on Vimeo.




O filme “L’Enfant Sauvage d’Averyon” (O Menino Selvagem de Averyon), de Fraçois Truffaut, baseado num caso verídico, relata a história de uma criança de onze ou doze anos que foi capturada num bosque, tendo vivido afastada da sua espécie e ficando depois à guarda do Dr. Jean Itard. 
    Embora se pense que o menino selvagem tenha sido abandonado no bosque quando tinha dois ou três anos, altura em que já deveria dispor de algumas ideias e palavras, em consequência do começo da sua educação, tudo isso se lhe apagou da memória devido a cerca de sete anos de isolamento. Quando foi capturado, andava como um quadrúpede, tinha hábitos anti-sociais, órgãos pouco flexíveis e a sensibilidade embotada, não falava, não se interessava por nada e a sua face não mostrava qualquer tipo de emoção. Toda a sua existência se resumia a uma vida puramente animal.
    Assim, o seu isolamento passado condicionou a sua aprendizagem futura que, além do mais, deveria ter sido realizada durante a sua infância (época em que o seu cérebro apresentaria mais plasticidade, existindo uma facilidade de aprendizagem, socialização e interiorização dos comportamentos característicos da sua cultura). Desta forma, o menino selvagem não só tinha que lutar contra o seu passado como contra a idade avançada para uma aprendizagem, muito provavelmente, sendo esta a razão porque, segundo Itard, “para ser julgado racionalmente, (o menino selvagem de Averyon) só pode ser comparado a ele próprio”.
    Segundo a tese de Lucien Malson, que escreveu “Les enfant sauvages” (As crianças selvagens), relatando e analisando não só este caso mas também outros casos de isolamento, o Homem é inferior a grande número de animais no seu estado de natureza. O autor defende que os animais, com o seu sistema nervoso rudimentar, não necessitam de viver com a sua espécie para realizar as acções características da mesma, não carecendo de serem ensinados devido aos seus instintos já desenvolvidos à nascença. 
Lançado no mundo sem forças físicas e sem ideias inatas, o Homem só pode tornar humano no seio da sociedade e, sem a socialização, seria, como já referi, um dos animais mais fracos já que, de todos os seres vivos, o Homem é o que na ocasião do nascimento se mostra mais incapaz. É isso que lhe permite desenvolver-se e adaptar-se ao meio em que vive, e a ideia de instintos que se desenvolvem por si não corresponde à realidade humana. O ser humano nasce inacabado e depende de uma sociedade, de uma cultura. Segundo Itard, “o indivíduo, privado das faculdades características da sua espécie, arrasta miseravelmente, sem inteligência nem afeições, uma vida precária e reduzida às funções de animalidade”. Assim, a superioridade moral, que muitos consideram ser natural nos seres humanos, não é mais do que um resultado da socialização, que contribui para a sua formação. Existe, então, uma força imitativa destinada não só à educação dos órgãos como à aprendizagem da palavra, que é muito activa nos primeiros anos de vida, mas enfraquece rapidamente com o avançar da idade.
    Ainda que a liberdade seja um fator que está subjacente às acções especificamente humanas, podemos concluir, tendo em conta todo este caso, que existem de facto condicionantes da ação humana. Em primeiro lugar, o menino selvagem, não obstante viver numa floresta, não tinha as mesmas capacidades físicas de outros animais, ou seja, os fatores biológicos também afectaram as suas acções enquanto selvagem. Em segundo lugar, surgem os factores intelectuais, pelo facto do menino não ter competências nesse sentido, o que dificultou as suas acções na sua vivência em sociedade. Por exemplo, quando o médico Itard tentou transmitir algum conhecimento no âmbito das letras, aconteceram, por vezes, ataques de fúria, pelo facto destas serem muito abstratas e, consequentemente, mais difícil foi a sua aprendizagem neste campo (neste contexto, alguns especialistas defenderem que o médico procedeu mal ao incluir letras, por serem demasiado abstratas, na educação do menino).
    Aprendeu também a desenvolver a afetividade, o que foi considerado um grande progresso. Tornou-se sensível às temperaturas extremas, espirrou pela primeira vez e chorou, também pela primeira vez. À medida que esta afetividade se foi desenvolvendo, criaram-se laços afetivos entre o menino e o Dr. Itard e a Mme. Guérin, a aprendizagem vai-se tornando mais fácil (note-se que os factores psicológicos são bastante influenciáveis pela relação com os outros). Por último, como já foi referido, os fatores sócio-culturais também influenciam as nossas ações pois, ao estarmos inseridos numa sociedade, as nossas ações e comportamentos são influenciados por ela, como se verificou com a socialização do menino selvagem, que teve de se sujeitar a regras e a deveres morais.
    Por fim, podemos concluir que o Homem, lançado na Terra, sem forças físicas nem ideias inatas, tanto na selva como na mais civilizada das sociedades, será apenas aquilo que dele fizerem. Segundo Karl Jaspers, “são as nossas aquisições, as nossas imitações e a nossa educação que nos transformam em homens do ponto de vista psíquico”. O comportamento humano é uma conquista feita em consequência do processo da sua integração no meio cultural, que varia em função da sociedade a que pertence. O que nos torna reconhecidamente humanos depende de muito mais do que a nossa herança genética e biológica: é fundamental ter em conta as dimensões social e cultural para que possamos compreender os seres humanos e a forma como se comportam. Tornamo-nos humanos através da aprendizagem de formas partilhadas e reconhecíveis de ser e de nos comportarmos. O Homem deve à cultura a capacidade de ultrapassar os seus instintos, tendo, desta forma, o poder de optar, escolher qual o caminho que considera melhor, segundo os valores em que se apoia, depois de analisar, racionalmente, a realidade. É portanto necessário “admitir que os homens não são homens fora do ambiente social” (Lucien Malson) e que necessitam, mais do que os outros animais, da vivência junto da sua espécie.
|http://psicopedia.webnode.pt(Texto Adaptado).

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