sábado, 1 de outubro de 2016

Quem és tu?



Quem és tu?

Se ela soubesse! Era obviamente Sofia Amundsen, mas quem era Sofia Amundsen? Ainda não tinha descoberto totalmente. E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Seria então uma outra pessoa? 

Subitamente, lembrou-se de que o seu pai inicialmente gostaria de ter-lhe dado o nome Synnöve. Sofia procurava imaginar como seria se cumprimentasse alguém e se
se apresentasse como Synnöve Amundsen — mas não, não conseguia. Imaginava sempre uma outra pessoa.

Saltou do banco e, com a estranha carta na mão, dirigiu-se para casa de banho.

Colocou-se frente do espelho, e olhou-se fixamente nos olhos.

— Eu sou Sofia Amundsen — disse.

A rapariga do espelho nem sequer respondeu com uma careta. Aquilo que Sofia fizesse, ela fá-lo-ia exatamente da mesma forma. Sofia procurava adiantar-se em relação ao espelho com um movimento muito rápido, mas a outra era igualmente rápida.

— Quem és tu? — perguntou Sofia.

De novo não recebeu nenhuma resposta, mas por um breve momento não soube se tinha sido ela ou o seu reflexo no espelho a fazer a pergunta. Sofia tocou com o indicador no nariz refletido no espelho e disse:

— Tu és eu. — Não recebendo resposta alguma, inverteu a frase:

— Eu sou tu.

Sofia Amundsen nunca estivera particularmente satisfeita com a sua figura. Ouvia
frequentemente dizer que tinha uns belos olhos de amêndoa, mas as pessoas diziam-no, sem dúvida, porque o seu nariz era demasiado pequeno e a boca um pouco grande. Além disso, as orelhas estavam demasiadamente juntas aos olhos. Mas o mais grave eram os cabelos lisos, difíceis de tratar. Por vezes, o pai passava a mão pelos seus cabelos e chamava-lhe “a menina dos cabelos de linho”, referindo-se a uma composição de Claude Debussy. Para ele era fácil dizê-lo, visto que não estava condenado para toda vida a ter cabelos compridos e negros, completamente lisos. Nos cabelos de Sofia nem o gel nem os sprays faziam efeito. 

Por vezes, achava-se tão estranha que se perguntava se não seria disforme de nascença. A sua mãe tinha-lhe falado num parto difícil. Mas seria possível o nascimento determinar, de facto, a
figura de cada um?

Não era estranho que ela não soubesse quem era? Não era absurdo não poder decidir
nada quanto à sua figura? Tinha simplesmente nascido consigo. Podia escolher os seus amigos, mas não se escolhera a si mesma. Nunca tinha decidido que queria ser um ser humano... O que é um ser humano? Sofia observou de novo a rapariga do espelho.

— Vou mais é fazer os meus trabalhos de biologia — disse, como que se desculpando.

Em seguida, estava à entrada da casa.

— Não, prefiro ir para o jardim — pensou.

— Bichano, bichano, bichano!

Sofia enxotou o gato para a escada e fechou a porta.

Quando ia pelo caminho de saibro com a misteriosa carta na mão, teve uma estranha
sensação. Imaginava-se como um boneco que, por artes mágicas, se tivesse tornado vivo.

Não era estranho que estivesse no mundo e pudesse tomar parte naquela aventura?

Sherekan saltou elegantemente pelo caminho de saibro e desapareceu por entre os
espessos arbustos. Um gato vivo, desde a ponta dos bigodes brancos até à cauda ondulante na extremidade do corpo. Também ele estava no jardim, mas certamente não estava tão consciente disso como Sofia.

Depois de ter pensado um pouco acerca do fato de existir, começou também a pensar que não estaria ali sempre.

“Neste momento estou no mundo”, pensou, “mas um dia terei desaparecido”.

Haveria uma vida após a morte? O gato também não tinha a mínima consciência deste
problema.

A avó paterna de Sofia tinha morrido recentemente.

Quase todos os dias, há mais de meio ano, Sofia pensava no quanto sentia a sua falta. Não era injusto que a vida tivesse sempre um fim?

Sofia parou no caminho de saibro, cismando. Procurou concentrar-se no fato de existir, procurando assim esquecer que não existiria sempre. Mas isso era de todo impossível. Quando se concentrava no pensamento da sua existência, emergia imediatamente a ideia do fim da vida.

O contrário era igualmente verdadeiro: só quando se apercebia que um dia teria desaparecido, compreendia claramente que a vida era infinitamente valiosa. Era como as duas faces da mesma moeda, uma moeda que ela virava constantemente. E quanto maior e mais clara era uma face da moeda, maior e mais clara se tornava também a outra. A vida e a morte eram duas faces do mesmo problema.

Não podemos imaginar que vivemos sem pensar que temos de morrer, dizia para consigo. Do mesmo modo, é impossível refletir sobre o fato que temos de morrer sem sentirmos simultaneamente que viver é algo maravilhoso.
Sofia lembrou-se que a avó, no dia em que soubera da sua doença, dissera algo semelhante. — Só agora tomo consciência de como a vida é rica — dissera ela.
Não era triste que a maior parte das pessoas tivesse que ficar doente para reconhecer que a vida é bela? 

Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, (Versão brasileira), Capítulo 1. (Texto Adaptado)

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Conhece-te a ti mesmo

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